terça-feira, 20 de agosto de 2024

UM CONTO DE PASSARINHO

                   UM CONTO DE PASSARINHO




Um dia encontrei dois filhotes de passarinho caídos no chão da minha varanda. Estavam quase morrendo, e um não resistiu. Decidi pegar o outro, e lembrei de não tocá-lo diretamente com minhas mãos. Alguém um dia me disse que caso isso acontecesse, a mãe o rejeitaria. Isso mexeu comigo, e verdade ou não, acreditei. Afinal, o que sabia eu sobre o assunto? Com uma pazinha de plástico consegui trazê-lo para perto de mim, e deixei a intuição me dirigir. Pinguei água em conta gotas com um floral de resgate, e ele ia reagindo. Empolgada, fui inventando um tratamento: coloquei o bichinho na terra dentro de um vaso grande onde havia lavanda plantada; pesquisei sobre alimentação de filhotes de passarinhos resgatados, e amassei numa tampinha um pouco da ração de Argos, o cão da família, e em outra pus água. À noite, eu o levava para a janela de um dos quartos, telada, pois há gatos que frequentam a varanda. Todas as manhãs, lá ia eu buscar Piupiu, (seu nome agora), para ficar na terra sob a sombra da lavanda. 
Estava dando certo. No seu novo cantinho, reparei que ele não somente sobrevivera, mas estava crescendo, e mais, recebia visitas ali de pássaros maiores, que na minha fantasia chamei de sua família. Ele estava sendo alimentado ali por esses visitantes! Então, decidi treiná-lo para voar. Estava gostando de cuidar de Piupiu, e a essa altura, algumas amigas já acompanhavam, rindo, o processo. Todos os dias eu o levantava com uma pazinha, ali mesmo perto da terra, ele batia as asas e voltava para a terra. Estava cada vez melhor, mais ágil, e até já ficava na borda do vaso, sentadinho, fazendo o que todos os passarinhos fazem: pousam. "Ainda não está pronto para voar", dizia eu às amigas. Eis que, numa tarde, ao entrar na varanda com Argos, (cachorro enorme que pesa mais de 40 kilos), e que nunca tinha se metido com Piupiu, as coisas mudaram. Não sei se ele achou o passarinho folgado demais e que já era tempo de acabar com a sua mamata, mas a verdade é que quando viu Piupiu pousado, relaxado, só faltando assobiar, num impulso passou na minha frente e deu-lhe uma latida na cara que até eu me assustei. E no susto, o passarinho voou rapidamente, lindamente, para longe. 

Piupiu já estava pronto, mas, como muitas vezes acontece conosco, vamos deixando, vamos ficando...Somente quando Argos decretou o final da linha, entendi que a missão já estava mais do que cumprida. 


sábado, 10 de agosto de 2024

Sobre Medo

 

                                  SOBRE MEDO


Há um lugar na minha varanda onde me sento pelas manhãs, com sol ou com chuva. Dali contemplo o céu, os desenhos que as nuvens fazem, vejo e escuto passarinhos em plena atividade, admiro os múltiplos tons de verde das árvores e as flores coloridas, e ali atrás, admiro uma montanha. Ao me conectar dessa maneira com a beleza, peço que essa harmonia traga as respostas que meu coração quer para o dia que se inicia e as intuições que o vento leva e traz, entre um ou outro gole do meu café. Faço reflexões, descobertas, planos, às vezes escrevendo, e às vezes apenas pensando, e me permito reconhecer como tudo está interligado.

E foi assim que um dia, uma gatinha, adotada por algum vizinho, veio me visitar. Pequena, um filhote, que achei ser fêmea, mas nunca confirmei e assim ficou sendo. Branquinha, com manchas em tons castanhos, coleirinha no pescoço com um coração, começou a se enroscar em mim, percorreu a varanda, pedindo para receber carinho. Destemida, mostrava como dar saltos no telhado pulando para outras varandas e depois voltando. Não tenho muita intimidade com gatos, mas ela me chamou a atenção, me fazendo rir, passeando pelas casas ao lado. Numa dessas casas, um cachorro enorme estava deitado tomando sol. Ele a viu, e ameaçador, começou a latir sem parar, pulando, mas a gatinha foi até lá e encarou o cão. Sim, colocou a carinha bem pertinho de sua boca, apenas observando a cena, sem medo. Parecia não entender o porquê daquele barulho todo, talvez sentindo-se protegida pela grade que o mantinha na varanda. E não é que o cachorro desistiu de latir? Simplesmente parou, sem saber o que fazer, e entrou na casa dele. E ela se foi, alegremente, continuando a pular de varanda em varanda, dando uma aula de agilidade, flexibilidade e coragem.
Qual final Esopo colocaria nesse encontro se estivesse ali, com suas fábulas? E nas contadas deliciosamente por Monteiro Lobato, o que diria a turma do Sítio do Picapau Amarelo? Sim, a riqueza das fábulas nos proporciona um alimento para a alma, e os animais nos ensinam lições sobre a vida, nos fazem refletir. Será que a confiança dessa gatinha passa por algum instinto que lhe sopra sobre perigos reais? Ou sobre o cachorro ser pesado e não conseguir pular a grade da varanda e pegá-la, logo ela, uma especialista em saltos no telhado? Ou quem sabe ela conhecia o velho ditado: “cão que ladra não morde!”?
Suas visitas continuaram a acontecer, e num momento em que a porta da minha varanda estava aberta, ela entrou em casa sem qualquer cerimônia. Mas, dessa vez, havia o meu cachorro, enorme, ali, e por pouco ela não se deu mal. Correu assustada e se safou. Empolgada com a exploração do mundo, filhotes são assim. Mas, talvez o excesso de confiança a tenha impedido de avaliar onde estava se metendo. Será? A gatinha não desistiu. Talvez tenha aprendido mais sobre sua necessidade de defesa, vai saber. Só sei que ela voltou no dia seguinte, e no outro, e hoje, e sempre volta.
Ah, a aprendizagem dessa vida prossegue, não termina nunca. A quantas desistências o medo já nos levou, justificadas por algumas situações que nossas fantasias catastróficas pintaram? E em quantas outras vezes nos safamos, porque a intuição gritou na hora certa “Sai daí!”? Mesmo sendo ágeis e flexíveis precisamos ser especialistas também em avaliar as possibilidades de enfrentamentos, superações, fugas, afastamentos, desapegos; e se o bem mais precioso que temos é o nosso tempo, sejamos bons em abrir os olhos, observando as pequenas coisas dessa vida para torná-las grandes, ou ao contrário. Se nos conectarmos com a sua sabedoria, perceberemos que mesmo parecendo que o mundo está parado e nada acontece, isso não é verdade.

Reflexões sobre Ninho Vazio

                 REFLEXÕES SOBRE "NINHO VAZIO"


Na minha varanda, numa viga no teto, instalou-se um passarinho, uma futura mamãe. Pois bem, ali ela chocou seus ovinhos, um até quebrou e caiu, mas vida que segue, ali estava ela. Vez por outra, desaparecia, sei lá, ia dar uma voltinha por essas lindas árvores da área. Depois regressava ao ninho concentrada na sua tarefa de chocar ovinhos. Enquanto eu contemplava essas mesmas lindas árvores ali da minha varanda todas as manhãs, acompanhava o processo. Cheguei a pesquisar, e soube que em vinte dias mais ou menos os filhotes apareceriam. Um dia, olhei para cima e vi mais duas carinhas de passarinhos. Senti alegria ao ver a nova família amontoada na telha. Alguns dias depois um dos filhotes já havia partido. Naturalmente, bateu suas asas e voou. Mas o irmão ficou. Eu observava que ele tentava voar, batia levemente as asinhas, e desistia, voltando para o ninho. Levou mais um ou dois dias para ir embora. Sua mãe vinha vez por outra olhar como iam as coisas, dava comida bico a bico a seu filhote e ia embora. E um dia, ele, o segundo passarinho, também se foi. O ninho ficou vazio.
O tema do ninho vazio nos remete de alguma forma à passagem do tempo. Somos convidados a dar uma revoada pelos caminhos percorridos nessa vida, enfrentar algumas despedidas, reavaliar limites e possibilidades. Às vezes damos pouca atenção às mensagens da natureza, deixando passar lições sobre a vida naquilo que nos cerca.
Imagino que o teto da minha varanda tenha sido bem avaliado no noticiário dos passarinhos da região, pois em seguida chegou nova mamãe com seus ovinhos, instalada nesse mesmo lugar, que não foi desmontado. Talvez fosse a mesma, como saber? Curiosamente, vi de outra janela da casa um cano com dois ovinhos abandonados, há dias. Vai ver que no mundo das aves também rola esse tipo de coisa: rejeição parental e abandono.
De qualquer maneira, chegamos ao x da questão: como dar novo significado à rejeição e ao abandono quando se fala em ninho vazio? São filhos que crescem, trabalhos que se encerram, o envelhecimento, mas talvez o maior abandono seja de nós para nós mesmos, nesse momento, quando não suportamos sentir nossas emoções. Ah, saudade. Um processo natural que demonstra que algo muito bom fez parte de nossas vidas um dia. Eu sei, dói, queremos mais, outra vez. De tudo. Às vezes penso que se pudéssemos matar a saudade de tudo lindo que já vivemos ao mesmo tempo, seria como usarmos todos os temperos da cozinha conjuntamente num só prato. Deve ficar horrível! E sei que é difícil aceitar que não há como voltar no tempo exatamente como eram as coisas. Quando um papel que desempenhávamos se torna obsoleto, é hora de buscarmos uma nova forma de realização. Pode doer um pouco, mas também é sinal de que deu certo, os filhos aprenderam a voar, e agora é hora do nosso voo, se o ninho esvaziou. Missão cumprida? Sim, novas decisões serão tomadas, novos rumos aparecerão.

Diferente de rejeição, estamos falando de progresso. É hora da criação de outro estilo de vida, de aprender sobre a própria companhia e as novas escolhas. A saudade? Bem, talvez a gente deva deixar que nossas boas lembranças iluminem o caminho, porque isso nos faz sorrir, é gostoso reviver bons momentos, e sabermos do que fomos capazes. Mas não deixemos que elas substituam o que temos pela frente aqui e agora, mesmo que sejam desafios, porque eles nos fazem evoluir.

Passeio, simples assim

 Passeio, simples assim.


Uma amiga viria me visitar, e a ideia era tomar um café, conversar, depois de um dia quente e com bastante trabalho para todos. Mas, naquela noite tudo estava tão calmo, o calor diminuíra bastante, e sugeri a ela sairmos um pouco, darmos uma volta. O meu fiel carrinho de golfe estava ali parado, esperando que partíssemos para um passeio noturno ao redor do kibbutz. Munidas de café, água, nozes e amêndoas, lá fomos nós.

Eu, carioca, desacostumada de sair à noite, nesses tempos, por medo de assaltos, ainda vibro e valorizo haver essa possibilidade por aqui, no kibbutz. Conversar ao ar livre, passear, cruzando com outros que também tiveram a mesma ideia, é uma das coisas simples e gostosas que não devíamos deixar de fazer. Lembro-me do tempo de adolescente, no Rio, vez por outra mamãe e eu gostávamos de pegar um ônibus em direção à Rocinha, ir até o ponto final e depois voltar a Copacabana. Que delícia! Era a nossa forma de relaxamento e admiração da paisagem da então cidade maravilhosa.

Nessa noite gostosa, nós duas conversamos muito, cumprimentamos passantes, saboreamos o lanchinho improvisado, e no ambiente silencioso cercado por árvores e flores, os temas de nossas almas foram convidados. Falamos, rimos, rodamos pelo kibbutz, e nem vimos o tempo passar.  Passeios como esse, cada vez mais me fazem acreditar que nas coisas mais simples há uma porta que conduz ao caminho da paz. Assim como respirar ar puro clareia as emoções, também é importante nos desapegarmos de impedimentos, que em sua maioria já nem sabemos mais de onde vieram. 



sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Guerra de Nervos

 

                  GUERRA DE NERVOS


Desperto com barulhos ensurdecedores e luzes amareladas que estouram sem parar. Vivo aquela sensação de estranheza, presenciando uma noite assustadora, diretamente da janela de meu quarto. Logo eu, uma neófita em estados de guerra, aprendendo a dormir vestida, com a mochila pronta para uma eventual fuga ao refúgio do kibbutz. Deito-me, mas quem poderia dormir depois disso?

No dia seguinte, vou para a janela verificar como estão meus vizinhos: todos prosseguem nas suas rotinas. Por ser comum, penso, adquiriram o hábito da coragem para seguir adiante. Bem, como o dia está lindo, um calor danado, e como pelo visto só eu estou estressada, sigo para a piscina. Vejo que o pessoal está nadando como faz todos os dias, um ou outro conversando dentro da água, falando pouco sobre o ocorrido. Uma turma bem-humorada dá adeus ao avião que passa, gritando "Estamos bem, não se preocupem!".

A guerra também prossegue, e a tristeza e preocupação não deixam de existir. É muito triste, há pessoas sofrendo e morrendo, mas sucumbir ao medo decididamente não é a ordem do dia. Não é solução. Será que coragem é um hábito? Se for, quero aprender, porque é hora de praticar o que já é sabido em teoria: a vida é aqui e agora! E assim, também prossigo, mergulhando, junto com todos.